segunda-feira, 20 de junho de 2016

LITERATURA: A OBRA DE ORANICE FRANCO EM EVIDÊNCIA NA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO JOÃO DEL-REI





Oranice Franco: aspectos ideológicos e culturais nas fábulas do Tio Janjão, Dissertação de Eloísa Pereira, aluna do Programa de Mestrado em Letras, da Universidade Federal de São João del-Rei, sob orientação da Professora Drª Suely Fonseca Quintana, foi defendida em sessão pública para obtenção do título de “Mestre”, na tarde de 17 de junho de 2016.

A Banca de arguição de Eloísa foi composta pela Professora Drª Maria Andréia de Paula Silva, de Juiz de Fora  e pelo Professor Dr. Anderson Bastos Martins, do Departamento de Letras a UFSJ, com suplência do Professor Dr. Alberto Ferreira da Rocha Júnior, também do Departamento de Letras da  UFSJ.

A defesa cumpriu o ritual acadêmico com uma apresentação oral de trinta minutos pela mestranda, seguida por sua arguição pelos professores titulares da Banca. Estavam presentes alunos do Mestrado em Letras da UFSJ, alunos de outros cursos da UFSJ, familiares, amigos, todos privilegiados que fomos pelo esmero de um trabalho que, merecidamente, foi reconhecido pelos professores da Banca, que, ao final, aprovaram-lhe a Dissertação, conferindo-lhe o título de Mestre em Literatura.

Conforme ressaltaram a Professora Maria Andréia de Paula Silva e o Professor Anderson Bastos Martins, a importância desse trabalho acadêmico defendido por Eloísa Pereira abrange tanto o âmbito acadêmico quanto o aspecto do patrimônio e da memória cultural de São João del-Rei. Louva-se a tentativa de inclusão da obra de Oranice Franco (1919-1999) no âmbito da literatura brasileira. O que só é possível pela vertente privilegiada pela Dissertação de Eloísa que se inspira no resgate empreendido pelos estudos literários que se fazem descolando-se dos chamados “grandes centros literários” para os bastidores da própria criação literária, para as margens desses grandes centros, por onde resistem os acervos particulares ou públicos. Movido o pesquisador por uma possessão Jacques Derrida, nomeia como “mal-arquivo”, que é essa procura incessante, apaixonada pelo arquivo onde quer que ele esteja. O trabalho de Eloísa percorre esses subterrâneos para trazer a obra de Oranice Franco à luz dos estudos contemporâneos de literatura.

Nesse sentido, relevante é a contribuição que o estudo de Eloísa traz tanto para a historiografia literária, na possibilidade de sua reescrita por esse vertente na contramão da chamada “grande literatura” quanto, em especial e particular para os estudos da obra de Oranice Franco, tendo sempre em mente a democratização do acesso a esse patrimônio cultural e literário que nasce da cultura local são-joanense, mas que se inscreve, certamente, no âmbito da cultura de Minas Gerais e do próprio país.

Reconhece-se, também, por outro lado, a sensibilidade do poeta Eric Ponty na sua compreensão do valor imprescindível da obra de Oranice Franco e no pertencimento dela à literatura e à cultura, cuja função social se completa à medida que se viabiliza o acesso aos estudos, divulgação e preservação dessa profícua fonte primária.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

A LITERATURA E A VIDA - Nilo da Silva Lima - Mestre em Teoria da Literatura pela UFMG



            Em abril de 2004, na defesa da dissertação O processo de criação de Oranice Franco: um estudo genético para obtenção do título de mestre em Teoria da Literatura, a Professora Sabrina Sedlmayer Pinto, que compunha Banca que me arguiu, dentre outras questões, cobra-me um entrelaçamento menos tímido do que a Síntese biográfica apresentada entre os aspectos da vida e da obra de Oranice Franco, considerando que o escritor vive e produz sua obra literária num dos períodos mais intensos da vida política do país, em meio às transformações significativas da história do Brasil.
            Tenho convivido com este desafio durante todos estes anos. Penso tomá-lo como o fundamento da defesa de Oranice Franco, Patrono da Cadeira 40, da Academia de Letras de São João del-Rei a que pertenci entre 2009 e 2014. Porém, o desafio, assim que assumo seu enfrentamento me parece exigir, ainda, um tempo maior de pesquisa, estudo e de convívio com os fatos deste entrelaçamento entre a vida e a obra de Oranice Franco. E prefiro adiá-lo.
            Alguns anos se passaram. Talvez agora esteja ou pelo menos me sinta menos despreparado, menos desconhecido da multiplicidade de fios textuais que tecem este itinerário que urde vida e obra de Oranice Franco. E talvez realize aqui um pouco do anseio da Professora Sabrina que, no entanto, gostaria de tê-lo ouvido já em 2004.
            Em 2 de novembro, celebram-se, tanto o nascimento quanto a morte de Oranice Franco. Se for verdade que “a literatura é a confissão de que a vida só não basta”, como dizia Fernando Pessoa, aqui, pretende-se aludir a alguns aspectos que provam este entrelaçamento entre o que Oranice Franco vive e escreve. Como uma forma de nos lembrarmos dele, da pessoa dele, humana, amiga, generosa, amante de seus amigos, da história e da cultura de São João del-Rei, que inspiram a criação da cidade Lagoa Mansa, sua cidade imaginária, sua cidade escrita, cuja vizinhança mais do que dividir territórios geográficos, cria uma transterritorialidade por onde Aiuruoca, Lima Duarte e Baependi transitam sem fronteiras geográficas, históricas e culturais.
            Reiteramos, sobretudo, nossos esforços para que a sua obra seja conhecida, estudada e divulgada como relevante patrimônio da literatura, da história e da memória cultural de São João del-Rei.
            O núcleo da questão formulada pela Professora Sabrina incide exatamente na lacuna deixada quanto à articulação entre literatura e vida. Entre o que Oranice Franco vive e escreve, considerando se tratar de um intelectual que atravessa uma parte significativa do século XX, exercendo atividade intelectual dos anos 30 aos anos 80, sendo que ele escreve e produz toda sua obra nesse mesmo período. Mesmo entendendo que:

Contudo, não é preciso se esforçar para unir a literatura e a vida, como tentaram gerações de historiadores e sociólogos, pois quando teriam as duas se encontrado separadas? (BLOOM, Harold, 2013, p. 43).

            Ressalto, mais uma vez a grande dificuldade na construção dessa trajetória Oranice Franco, dada à dispersão de muitos elementos do acervo que ele teria formado ao longo de sua vida. Não me refiro ao que constitui atualmente o acervo cujo curador é o poeta Eric Ponty, a quem sempre agradeço e de quem reconheço o esforço empreendido pela preservação e estudo da obra de Oranice Franco, mas à parte que supostamente o próprio escritor teria dispersado ou destruído numa espécie de acesso de pirotecnia. O que continua me inquietando imensamente, dada a consciência demonstrada por Oranice na organização detalhada de cada um dos elementos que compõe o seu acervo, o que acena para a certeza de estar reunindo ali elementos fundamentais ao estudo da memória cultural, da literatura tanto quanto da própria história pessoal.
            Outro aspecto desta dificuldade é o deslocamento propriamente dito de Oranice Franco e de sua obra literária no meio literário. Apesar de uma reconhecida, embora tímida, recepção de sua obra por Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Jorge Amado, Dantas Motta, Fausto Cunha, Murilo Rubião, Mello Cançado, Nestor de Holanda, Alceu de Amoroso Lima, dentre outros que lhe valeu não exatamente um estudo, uma fortuna crítica definida, mas a alusão a alguns aspectos tanto de sua obra poética quanto de sua prosa.
            Primeiro, certamente, por seu caráter arredio às badalações, aos meios de circulação tanto do texto literário quanto dos literatos, da crítica e do leitor. Haja vista a reclamação feita por Ricardo Galeno no artigo “O poeta Oranice Franco”, publicado no Diário Carioca, de 21 de agosto de 1953:

Pena, Oranice que você seja um sujeito do Rádio. Um ausente das futricas do Vermelhinho (bar que reunia literatos, homens de revistas e suplementos literários e editores). Um ausente dos cochichos vespertinos da Zé Olympio [...]  devias publicar em revista que é o meio de divulgação no interior. Te lanças nas revistas e serás mais lido pela crítica do que publicando livros que poucos lêem.

            O que me parece sempre ambíguo, porque mesmo sem grande ou quase nenhum afã pela frequência desses meios, ninguém escreve para não ser lido, para entulhos de gaveta. E até mesmo também em função da amizade que mantém em São João del-Rei. Lembro-me, aqui, das letras de músicas que escreve em parceria com Vicente Vale e outros compositores são-joanenses, como o Almeida, que adora as serenatas pelas ruas da cidade. Os passeios por alguns bares, o tango, os namoricos. Arredio, possivelmente. Porém, não absolutamente avesso às badalações.
            Segundo, por se tratar de um homem do rádio. Oranice Franco, depois de breve passagem pela Belo Horizonte do fim dos anos 30, vai para o Rio de Janeiro. É admitido na Rádio Nacional, em abril de 1940, onde trabalha até 1972, quando se aposenta. Há esta dificuldade por uma falsa ideia formada, inclusive pelos próprios intelectuais que trabalhavam em rádio de que produzem subliteratura.
            Aliás, em entrevista a Lia Cabrale, em 2006, Ghiaroni (Giuseppe Artidoro Ghiaroni), amigo de Oranice Franco, que trabalhou com ele na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, afirma:

Nós considerávamos, como todos os outros, que fazer rádio era fazer subliteratura, segunda categoria, meio maldito e tal o que eu acabei sendo. Curiosamente quando comecei a trabalhar na Rádio Nacional, por exemplo, eu, Oranice Franco, um outro amigo nosso, o João Távora, vivíamos cheios de ideias literárias, querendo publicar livros e, em suma invadir o mundo editorial. Nós lamentamos muito. Ira para o rádio era se perder, era como, por exemplo, do ponto de vista do teatro clássico, alguém que dá para o teatro rebolado. De certa forma esse preconceito em certa áreas ainda permaneceu até que se reformulou o conceito do que é comunicação, se viu que realmente é cultural, que é integração com a vida, com a alma da coletiva de um povo (GHIARONI, apud CABRALE, 2003, p. 6).

                Esse alheamento de Oranice Franco às badalações literárias, ao burburinho em torno da obra e, sobretudo da pessoa do autor pode ser pensado, não como mera  dificuldade de inserção nos círculos literários, mas, ao contrário, como Foucault diz em O que é o autor (1992):

Na escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever, nem da fixação de um sujeito numa linguagem: é uma questão de abertura de um espaço onde o sujeito de escrita está sempre a desaparecer (FOUCAULT, 1992, p. 35).

Ou seja, vencida a fase da ânsia para publicar e invadir o mundo editorial forma-se, não uma frustração pela irrealização desse sonho, dessa obsessão, mas uma consciência de certo parentesco da “escrita com a morte” (FOUCAULT, 1992, p. 35) em que “o autor deve apagar-se ou ser apagado em proveito das formas próprias aos discursos” (FOUCAULT, 1992, p. 80).
Daí Oranice Franco preferir, cada vez mais radicalmente, vida plena à sua obra com o alheamento, com a morte do autor, até à sua morte física, num eco desse “o que importa quem fala?” (FOUCAULT, 1992, p. 34).
            Terceiro, pelo caráter da publicação, divulgação e distribuição de seus livros dentre eles alguns custeados pelo autor, outros em razão de sua amizade com os Irmãos Pongetti, com a editora A Noite, que pertencia a um grupo da própria Rádio Nacional e, posteriormente, com Sebastião Hersen, da Editora Conquista, do Rio de Janeiro, que publica autores novos, desconhecidos, e com quem desenvolve uma espécie de ficção editorial, que inclui a publicação de alguns livros de Oranice Franco, como, Tem peru na lagoa (s/d), Oranice’s (1982), como se tivesse sido publicados pela editora Lagoa Mansa, da cidade escrita de mesmo nome. Um jogo editorial-ficcional.
            Ou seja, a carreira de escritor e poeta de Oranice Franco sempre se faz na contramão do que pretendem e fazem os literatos. Malgrado o objetivo que é ser lido, atingir o grande público, tudo se foi fazendo muito amadoramente. Muito timidamente. Pequenas editoras, limitadas edições, divulgação insuficiente, fuga dos grandes jornais, ausência dos suplementos literários e acomodação à suposta ideia de que o rádio e os seus intelectuais produzem subliteratura.
            Aliás, a obra de Oranice Franco fascina exatamente por se colocar o tempo todo nessa aparente contramão da história e da literatura. Quase que numa negação ou num certo apagamento da história de sua literatura e de si na história. Porém, não se faz literatura absolutamente desconexa do tempo, do espaço, das vozes contemporâneas de sua escrita, portanto, indiferentes e ilesas à história. Porque a literatura é transformadora da história pela urdidura do que poderia ter sido e não foi, e não pôde ser, mas que se torna e se faz história por essa escrita que, mesmo não tendo compromisso com representação, encenação, confirmação ou negação da história, jamais fora da histórica ou anti-histórica.
            Como demonstrar, então, o entrelaçamento entre vida e obra de Oranice Franco? Como não apenas reivindicar, mas inserir a sua obra no cenário da literatura brasileira se nela se lê um silenciamento, uma suposta negação da própria história?
            A biografia de Oranice Franco nos autoriza dizer que desde sua infância em São João del-Rei, demonstra habilidade com a palavra, com a produção textual. Seu acervo guarda muitos cadernos dessa época de quando estuda em São João del-Rei, onde se pode ler com certa clareza o escritor, o poeta que ali naquelas páginas se forma a duras penas no seu enfrentamento diário e pessoal com a palavra. Quer escrever, publicar, compreender o mundo e transformá-lo, ou melhor, humanizá-lo pela palavra, pela literatura. Nada ou pouca coisa me parece mais caro ao projeto literário de Oranice Franco do que o seu esforço histórico e poético pela humanização do homem e do mundo.
            Lagoa Mansa não é caricatura de nada. Nem se São João del-Rei, nem dos amigos que a sua escritura nasce de cidadania lagoense. Nem da história e da cultura de São João del-Rei, Aiuruoca, Lima Duarte e Baependi. Lagoa Mansa é a sua ação humanizadora, de cidadão consciente do século XX, poeta, escritor, na história através das pequenas coisas, das cidades mais simples, das pessoas, dos valores mais simples. Do mínimo. Aprendida lição de Manuel Bandeira de que “a poesia está em tudo – tanto nos amores, como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas” (BANDEIRA, 1984, p.19) e de que “as poesia está nas palavras, se faz com palavras” (BANDEIRA, 1984, P. 30).
            No entanto, poesia e literatura, bem como teatro, música, dança ou qualquer arte não são ocupações bem vistas. Ideia de gente séria, de quem quer trabalhar, quer vencer na vida. E Oranice Franco se apaixona pelo Jornalismo, como esta espécie de fuga do preconceito social contra ser poeta, ser escritor. Tanto que no final dos anos 30, como ele mesmo escreveria sobre si num artigo publicado no 2º Anuário do Rádio, 1946 – “com os primeiros fios de barba, achei que era tempo de criar juízo. Arrumei as malas e fui para Belo Horizonte. Na capital mineira me ajuntei a outros poetas e desandei”.
            Destas amizades de Belo Horizonte se destaca a de Murilo Rubião com quem trabalha como articulista no jornal Folha de Minas e na revista A Mensagem. Tanto que em carta de maio de 1954 a Oranice Franco, que já está no Rio de Janeiro, Murilo Rubião tece elogio ao estilo de Oranice que chama de “doce lirismo que infelizmente vai se tornando raro”, além de mencionar a crítica de Mello Cançado ao livro Mares de Minas (1949), de Oranice Franco e de brincar/revelando ao amigo que anda um pouco afastado da literatura. Está plantando abóboras no quintal e insiste que Oranice lhe visite, incluindo no final da carta o endereço do bairro Serra, em Belo Horizonte.
            De Belo Horizonte, Oranice Franco vai para o Rio de Janeiro, aonde chega, como diz Ghiaroni, “cheio de ideias literárias, querendo publicar livros e, em suma, invadir o mundo editorial”. Mas de novo e sempre a sobrevivência supera, atrasa, por vezes até atrofia os sonhos pela urgência da vida. E Oranice vai trabalhar na Rádio Nacional do Rio de Janeiro.
            O rádio nos anos 40 está no início de sua expansão, caminhando para o ápice de sua afirmação como um elemento cultural do Brasil, como um instrumento de difusão cultural. Aliás, a Rádio Nacional passa a fazer parte do patrimônio nacional por meio de Decreto de Getúlio Vargas e se expande sob a direção de Gilberto de Andrade. Mesmo frustrando os anseios do poeta e do escritor que só ao longo dos anos, trabalhando ao lado de Paulo Gracindo, Mário Lago, Dias Gomes, Ghiaroni, Nestor de Holanda, entende que ali e dali, ao contrário de uma ideia preconceituosa, admitida pelos próprios intelectuais de rádio, produz-se uma das vertentes importante da cultura brasileira. Mas continua escrevendo e publicando timidamente fora das quatro paredes do rádio, como um jovem que não se desfaz nem se distancia de seu sonho. Se for verdade, como Oranice diz que “todo mineiro é feito de pequenas raivas”, a sua obra é prova da perpetuação desta raiva diária de mineiro que continua produzindo literatura – poesia e prosa – na contramão do próprio mundo literário, que começa a descobri-lo nesses tempos em que a historiografia literária se faz, refaz, reescreve-se das margens, dos bastidores da literatura para os chamados grandes centros literários e culturais.
            Oranice Franco é reconhecido como um dos melhores redatores da Rádio Nacional, tendo produzido diversos programas, escrito radionovelas, sozinho e em parceria com Mário Brassini e Pedro Anísio. Trabalha com publicidade para mercados diversos numa época em que começa a se desenvolver tanto a propaganda e a publicidade quanto a própria noção de tornar determinado produto mais acessível a um maior número possível de consumidor, dada à audiência da Rádio Nacional. É assim que Cadena (2011) no artigo Rádio Nacional: a BBC verde amarela afirma que:  


Era o poeta e cronista Oranice Franco quem redigia os textos para os anunciantes diretos da emissora, dentre eles grandes marcas como Sydney Ross e Palmolive. A Rádio Nacional, na verdade, seria a mídia da mãe, durante mais de vinte anos, para os grandes fabricantes de produtos de consumo (CADENA, 2011, p. 1).

Além de produzir toda sua obra literária entre 1949, ano da publicação de seu primeiro livro de poesia, Mares de Minas, e 1988, ano de publicação de seu último livro, Histórias de Lagoa Mansa, que se trata da reescrita de 29 contos escolhidos de sua trilogia composta por Lagoa Mansa (1972); Estórias de Lagoa Mansa (1981) e Tem perua na Lagoa (s/d).
            Penso que o entrelaçamento entre vida e obra de Oranice Franco se pode dizer ou chamar de um entrelace. Oranice Franco nasce em Lima Duarte, em 2 de novembro de 1919, passa por Aiuruoca, muda-se para São João del-Rei, estuda em Barbacena e Juiz de Fora, passa pelo jornalismo em Belo Horizonte e vai definitivamente trabalhar no Rio de Janeiro. Porém, ama e se fixa, apaixonadamente, em São João del-Rei. Essa paixão pela cidade e por sua gente é fundamental à compreensão tanto do homem Oranice quanto do escritor e poeta.
            Paixão de tal modo contagiante que é ela que dá à obra de Oranice tanto consistência literária quanto uma aparente desconexão ou descompromisso com a história no interior da qual se acha e de que aparentemente se exclui.
            A sua biografia diz que se torna, na era de ouro do rádio, um dos principais redatores e produtores de programas da Rádio Nacional, tendo empreendido esforços em 1950, junto ao governo de Juscelino Kubitschek pela concessão de canal nacional de televisão. Produz diversos programas, com destaque para Histórias do Tio Janjão (1953-1955), pelo poder de divulgação e incentivo da leitura neste país com fama de que aqui não se lê, de que se lê cada vez menos e pior. Prova contundente senão da inverdade absoluta desta ideia, pelo menos do esforço efetivo pela superação deste suposto distanciamento da leitura.
            Nesta época, este programa é utilizado por inúmeras escolas no país que passam a criar dentro do espaço pedagógico seu momento de leitura, tão importante que as crianças, numa confusão entre o Tio Janjão narrador das histórias e o escritor Oranice Franco, escrevem para o escritor na Rádio Nacional. E, assim, as Histórias do Tio Janjão se tornam um elemento provocador da imaginação, dos sonhos de construção de uma nova sociedade, do acesso democrático à cultura.
            Quando não só o rádio, como o próprio país passa a viver dias difíceis no cenário político, culminando com a Revolução de 1964, quando o rádio já vive seu declínio com o desenvolvimento e concorrência da televisão com início de um longo período de ditadura, Oranice Franco manifesta-se publicamente, diante da perseguição sofrida por vários colegas e rádio e outros intelectuais, como Mário Lago, Paulo Gracindo, Paulo Roberto, César Ladeira. São demitidos 67 funcionários da Rádio Nacional e 81 postos sob investigação, denunciados por apoio ao comunismo. Oranice Franco se põe ao lado deles. E, ampliando esse apoio solidário, manifesta-se em ato de assinatura do Manifesto do Comando dos Trabalhadores Intelectuais, em outubro de 1963, pela emancipação cultural do país e em defesa das liberdades democráticas, conforme transcrição feita desse manifesto por Carlos Heitor Cony no livro Vozes do golpe: a revolução dos caranguejos (2004). Sendo em 1964 jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo pedem a prisão de todos os signatários deste manifesto sob a acusação de fazerem parte de um esquema comunista de assalto ao poder.
Embora tendo sido, provavelmente, redigido em outubro de 1963, data da fundação do Comando dos Trabalhadores e Intelectuais (CTI), entre o dia 1º e o dia 13 de abril de 1964 é que concretiza a publicação, a veiculação e a repressão ao Manifesto dos Trabalhadores Intelectuais.
O objetivo do manifesto, segundo Czajka (2011, p. 71) é:

a)congregar  trabalhadores intelectuais, na sua ampla e autêntica concentração;
b)apoiar as reivindicações específicas de cada setor da cultura brasileira, fortalecendo-as dentro de uma ação geral efetiva e solidária;
c)participar da formação de um frente única, democrática e nacionalista, com as demais forças populares, arregimentadas na marcha por uma estruturação melhor da sociedade brasileira.

Sendo, assim, o Comando dos Trabalhadores Intelectuais, procura

desde o início de suas atividades congregar diversos artistas e intelectuais com o intuito de estimular a participação destes na consolidação dos interesses e reivindicações de uma “classe” dos intelectuais. (p. 63).

Ou seja:

O CTI nasce agregando intelectuais das mais variadas áreas como oposição contra a tentativa de golpe da direita e da definição da liberdade democrática. Assim, “O CTI surgiu com essa característica pluralista e procurava ressaltar a importância desse aspecto na estruturação e na consolidação da luta dos intelectuais pela cultura nacional-popular” (p. 67).

Sobretudo com relação a Oranice Franco é importante ressaltar que:

Pelo contrário, dos integrantes, alguns terão maior visibilidade outros, menor no espaço público dependendo do modo como manejaram seus vocabulários e inseriram-se na indústria cultural. E essa visibilidade não será dada necessariamente pelo pertencimento a alguma entidade ou grupo específico (como uma unidade fechada e coesa em torno de um projeto definido), mas pela atuação individual de alguns de seus representantes na cena política e cultural (p. 78)

Como fica claro na biografia de Oranice, o escritor nunca se demonstra um intelectual inserido de arraigado pertencimento a qualquer grupo específico, que não seja o número exíguo de seus amigos. A quem, no entanto, é pródigo em apoio e solidariedade, daí, não apenas ter assinado sua adesão ao Comando dos Trabalhadores Intelectuais, partilhando as ideias e posições político-sociais, como toma literalmente parte na causa por eles defendida quanto nas consequências que lhe acomete em razão dessa tomada de posição.
Alguns textos confirmam que, malgrado o jeito arredio, Oranice Franco participa ativamente dos transtornos desse momento político no país.
Em razão da postura da Rádio Nacional pela defesa da democracia em resistência ao golpe, a rádio é invadida por militares, fuzileiros navais e coronéis do Exército que instauram o IPM (Inquérito Policial Militar), com o resultado de 36 demissões, dentre artista e jornalista, 67 afastamentos e 81 investigados que podiam ser demitidos ou afastados. Muitos são torturados. Segundo Oliveira (2014) “por medida de segurança, foram afastados do serviço e das dependências da Rádio Nacional”.
Castro (2015) ressalta que:

No dia 13 de abril de 1964, o Comunicado 6, assinado pelo Comando Supremo da Revolução “afastou 36 funcionários da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Deixaram o ar imediatamente: Ghiaroni, Mário Lago Dias Gomes, dentre outros. Na época denunciantes pretendiam “limpar a Rádio Nacional do perigo comunista”.

Prova contundente da participação solidária de Oranice Franco e de seu afastamento das atividades na Rádio Nacional se encontra no jornal Correio da Manhã, de quarta-feira, de 29 de julho de 1964, coluna “Bom dia Rio”, em que Sérgio Bittencourt noticia que:

A crônica das 19 h. da Nacional vem sendo redigida por Almeida Rego em substituição da Oranice Franco afastado da rádio pelos “heróis” de uma revolução (BITTENCOURT, 1964, p. 3)

Ao lado desses fatos, a declaração do próprio Ghiaroni, companheiro de redação e amigo de Oranice Franco, em carta a esse pesquisador em que revela:

ORANICE E A SAUDADE: De Oranice Franco fui amigo, leitor e irmão. Dele não tenho uma lembrança que não inclua algo de sentimento fraterno. Trabalhamos juntos, escrevemos juntos, sonhamos juntos, estivemos escondidos juntos quando nos parecia que a nova situação política do País não nos via com bons olhos. Tudo isso passou. O que resta agora é a saudade do grande companheiro, grande autor e maravilhosa criatura humana que se chamou Oranice Franco, um nome para ficar na memória das gerações sucessivas (GHIARONI, Carta, 25 abr. 2000).

Todavia, a obra de Oranice Franco ressalta que, além, de seu caráter social arredio às badalações literárias ou não, pelo menos mais duas instâncias reúnem também sua resistência: à política (“a política é a ingratidão”, na fala da personagem
Juvenal de Souza que, por causa das desavenças políticas, foge e vira, noutro lugar, João dos Santos, para salvar as iniciais na anca égua – FRANCO, 1972, p. 81). Embora não se furte de disseminar pelo caos que também corroem a tradição da cidade denúncias, reivindicações, críticas ao poder municipal, aos arranjos e promessas eleitoreiras. E à polícia (“polícia é um trem danado! Um sozinho é uma humildade! Juntou uma porção, êta!”, na fala de Alacrino, um morador do distrito Quatrolhos, de Lagoa Mansa – FRANCO, 1972, p. 87). Salvo eventualidades de 1963-1964, não se sabe de seu envolvimento com a polícia. A política, no entanto, está em sua obra sempre sob um olhar crítico, cuidando de seu afastamento do interesse público.
            Retomando a paixão de Oranice Franco por São João del-Rei, os estudos até então empreendidos, a convivência praticamente diária com sua obra (poesia, prosa, crônicas, radionovelas, literatura infantil), pode-se dizer, embora sem a pretensão de reduzi-la apenas a este aspecto, que a paixão pela sua cidade, sua gente, sua história, sua  cultura é o entrelace que escreve, que tece a vida e a obra de Oranice Franco, quase que como única cena, uma vez que o cenário é permanentemente a cidade. É ela e é por ela que o poeta, depois de vivida a sua diáspora pessoal, volta. Com ela e por ela que vence a saudade dos primeiros anos no Rio de Janeiro, quando “o Rio começa a doer” e os morros da Tijuca e do Corcovado citam, arrastam, acendem a Serra do Lenheiro de dentro do peito. Que vence os barulhos, o tropel, o silêncio doído dos anos da ditadura que enxergam em tudo ameaça. Que vence o idealismo de um progresso pelo progresso, feito à custas de recessão. Que vence o fim dos áureos anos do rádio, substituído em tudo pela televisão. Que vence os preconceitos de homem de rádio, de intelectual e escritor de rádio. Que vence seu jeito arredio às badalações sociais ou literárias, com seus livros lidos pela crítica especializada. Que vence, enfim, o tumulto da cidade grande. Refaz, adulto, o caminho do menino-rapaz.
            O retorno é silencioso para o silêncio. Não há o choro da ida. Nem a orgia da volta. Não há a ânsia da ida. Nem a desesperança da volta. Não há os sonhos da ida. Nem a morbidez da volta. Só o poeta e a cidade sabem. Certamente que Histórias de Lagoa Mansa (1998), aliás, enfim “histórias”, sejam a celebração silenciosa desse regozijo da volta, desse arredo derradeiro ao silêncio.
            Agora a cidade e o poeta, seu criador, passaram pela história. A cidade que o menino sonha, a cidade que o poeta recebe. A cidade que inventam, que desejam, que escrevem. Conservam em meio às guerras, às transformações sociais, políticas, econômicas, à tecnologia, a simplicidade de sua geografia inscrita nos seios das serras de Minas Gerais, onde os sinos falam e se embocam, propagam e se eternizam. E as noites são povoadas de serenatas, os homens ainda se tornam mais humanos e os poetas, mesmo depois da pedra no meio do caminho, inventam sertões gerais.
A obra de Oranice Franco não nega a história. Não se silencia nem se mostra indiferente diante das principais feridas que sangraram e ainda mantêm nítidas cicatrizes nos dias atuais. Pelo contrário, exige que caminhemos por ela, como quem chega numa cidade de Minas Gerais e escuta seus sinos, suas serenatas; lê seus casos, seus letreiros solitários na madrugada insone; entrega-se aos itinerários de suas procissões, de sua resistência, de suas denúncias, de seu luto; canta suas músicas, entoa seus cânticos, seu hinos; acompanha suas orquestras; encanta-se com seus poemas, com seus poetas, com as chamas trêmulas de seus lampiões, para sempre acesos na memória; ouça seus odore, seus amores. A história, o país pulsa em cada um destes gestos que são como as cidades no meio destas montanhas – um único olhar não pode enxergá-las todas. Há que se caminhar, ir, ter-se com cada uma delas onde elas se acham.
            O grande valor da literatura de Oranice Franco, como ressalta Murilo Rubião, em carta de maio e 1954, é exatamente este “doce lirismo que infelizmente vai se tornando cada vê mais raro”. Mas também, porque é impossível separá-la da vida. Aliás, “qualquer distinção entre literatura e vida é enganosa” (BLOOM, 2013, p. 16).
            Assim, corroborando o que diz Murilo Rubião, não sei se este doce lirismo é o criador do humanismo de Oranice Franco ou, ao contrário, o humanismo seja a mais cara criatura do “doce lirismo” do escritor.


Referências bibliográficas:

BANDEIRA, Manuel. O itinerário de Pasárgada. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

BITTENCOURT, Sérgio. Bom dia Rio. Correio da Manhã. 2º Caderno. Rio de Janeiro, p. 3. 29 jul. 1964.

BLOOM, Harold. A anatomia da influência: literatura como vida. Tradução Ivo Korytowski e Renata Telles. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.

CALABRE, Lia. Rádio e imaginação: no tempo da radionovela. INTERCOM - Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Belo Horizonte. 2 a 6 set. 2003. Disponível em <www.intercom.org.br>. Acessado em 25. jul. 2015.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Tradução de Antônio Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro. São Paulo: Veja, 1992.

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