Em abril de 2004, na defesa da
dissertação O processo de criação de
Oranice Franco: um estudo genético para obtenção do título de mestre em
Teoria da Literatura, a Professora Sabrina Sedlmayer Pinto, que compunha Banca
que me arguiu, dentre outras questões, cobra-me um entrelaçamento menos tímido
do que a Síntese biográfica
apresentada entre os aspectos da vida e da obra de Oranice Franco, considerando
que o escritor vive e produz sua obra literária num dos períodos mais intensos
da vida política do país, em meio às transformações significativas da história
do Brasil.
Tenho convivido com este desafio
durante todos estes anos. Penso tomá-lo como o fundamento da defesa de Oranice
Franco, Patrono da Cadeira 40, da Academia de Letras de São João del-Rei a que
pertenci entre 2009 e 2014. Porém, o desafio, assim que assumo seu
enfrentamento me parece exigir, ainda, um tempo maior de pesquisa, estudo e de
convívio com os fatos deste entrelaçamento entre a vida e a obra de Oranice
Franco. E prefiro adiá-lo.
Alguns anos se passaram. Talvez
agora esteja ou pelo menos me sinta menos despreparado, menos desconhecido da
multiplicidade de fios textuais que tecem este itinerário que urde vida e obra
de Oranice Franco. E talvez realize aqui um pouco do anseio da Professora
Sabrina que, no entanto, gostaria de tê-lo ouvido já em 2004.
Em 2 de novembro, celebram-se, tanto
o nascimento quanto a morte de Oranice Franco. Se for verdade que “a literatura
é a confissão de que a vida só não basta”, como dizia Fernando Pessoa, aqui,
pretende-se aludir a alguns aspectos que provam este entrelaçamento entre o que
Oranice Franco vive e escreve. Como uma forma de nos lembrarmos dele, da pessoa
dele, humana, amiga, generosa, amante de seus amigos, da história e da cultura
de São João del-Rei, que inspiram a criação da cidade Lagoa Mansa, sua cidade
imaginária, sua cidade escrita, cuja vizinhança mais do que dividir territórios
geográficos, cria uma transterritorialidade por onde Aiuruoca, Lima Duarte e
Baependi transitam sem fronteiras geográficas, históricas e culturais.
Reiteramos, sobretudo, nossos
esforços para que a sua obra seja conhecida, estudada e divulgada como
relevante patrimônio da literatura, da história e da memória cultural de São
João del-Rei.
O núcleo da questão formulada pela
Professora Sabrina incide exatamente na lacuna deixada quanto à articulação
entre literatura e vida. Entre o que Oranice Franco vive e escreve,
considerando se tratar de um intelectual que atravessa uma parte significativa
do século XX, exercendo atividade intelectual dos anos 30 aos anos 80, sendo
que ele escreve e produz toda sua obra nesse mesmo período. Mesmo entendendo
que:
Contudo, não é
preciso se esforçar para unir a literatura e a vida, como tentaram gerações de
historiadores e sociólogos, pois quando teriam as duas se encontrado separadas?
(BLOOM, Harold, 2013, p. 43).
Ressalto, mais uma vez a grande
dificuldade na construção dessa trajetória Oranice Franco, dada à dispersão de
muitos elementos do acervo que ele teria formado ao longo de sua vida. Não me
refiro ao que constitui atualmente o acervo cujo curador é o poeta Eric Ponty,
a quem sempre agradeço e de quem reconheço o esforço empreendido pela
preservação e estudo da obra de Oranice Franco, mas à parte que supostamente o
próprio escritor teria dispersado ou destruído numa espécie de acesso de
pirotecnia. O que continua me inquietando imensamente, dada a consciência
demonstrada por Oranice na organização detalhada de cada um dos elementos que
compõe o seu acervo, o que acena para a certeza de estar reunindo ali elementos
fundamentais ao estudo da memória cultural, da literatura tanto quanto da
própria história pessoal.
Outro aspecto desta dificuldade é o
deslocamento propriamente dito de Oranice Franco e de sua obra literária no
meio literário. Apesar de uma reconhecida, embora tímida, recepção de sua obra
por Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Jorge Amado, Dantas Motta,
Fausto Cunha, Murilo Rubião, Mello Cançado, Nestor de Holanda, Alceu de Amoroso
Lima, dentre outros que lhe valeu não exatamente um estudo, uma fortuna crítica
definida, mas a alusão a alguns aspectos tanto de sua obra poética quanto de
sua prosa.
Primeiro, certamente, por seu
caráter arredio às badalações, aos meios de circulação tanto do texto literário
quanto dos literatos, da crítica e do leitor. Haja vista a reclamação feita por
Ricardo Galeno no artigo “O poeta Oranice Franco”, publicado no Diário Carioca, de 21 de agosto de 1953:
Pena, Oranice que
você seja um sujeito do Rádio. Um ausente das futricas do Vermelhinho (bar que
reunia literatos, homens de revistas e suplementos literários e editores). Um
ausente dos cochichos vespertinos da Zé Olympio [...] devias publicar em revista que é o meio de
divulgação no interior. Te lanças nas revistas e serás mais lido pela crítica
do que publicando livros que poucos lêem.
O que me parece sempre ambíguo,
porque mesmo sem grande ou quase nenhum afã pela frequência desses meios,
ninguém escreve para não ser lido, para entulhos de gaveta. E até mesmo também
em função da amizade que mantém em
São João del-Rei. Lembro-me, aqui, das letras de músicas que
escreve em parceria com Vicente Vale e outros compositores são-joanenses, como
o Almeida, que adora as serenatas pelas ruas da cidade. Os passeios por alguns
bares, o tango, os namoricos. Arredio, possivelmente. Porém, não absolutamente
avesso às badalações.
Segundo, por se tratar de um homem
do rádio. Oranice Franco, depois de breve passagem pela Belo Horizonte do fim
dos anos 30, vai para o Rio de Janeiro. É admitido na Rádio Nacional, em abril
de 1940, onde trabalha até 1972, quando se aposenta. Há esta dificuldade por
uma falsa ideia formada, inclusive pelos próprios intelectuais que trabalhavam
em rádio de que produzem subliteratura.
Aliás, em entrevista a Lia Cabrale,
em 2006, Ghiaroni (Giuseppe Artidoro Ghiaroni), amigo de Oranice Franco, que
trabalhou com ele na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, afirma:
Nós considerávamos,
como todos os outros, que fazer rádio era fazer subliteratura, segunda
categoria, meio maldito e tal o que eu acabei sendo. Curiosamente quando
comecei a trabalhar na Rádio Nacional, por exemplo, eu, Oranice Franco, um
outro amigo nosso, o João Távora, vivíamos cheios de ideias literárias,
querendo publicar livros e, em suma invadir o mundo editorial. Nós lamentamos
muito. Ira para o rádio era se perder, era como, por exemplo, do ponto de vista
do teatro clássico, alguém que dá para o teatro rebolado. De certa forma esse
preconceito em certa áreas ainda permaneceu até que se reformulou o conceito do
que é comunicação, se viu que realmente é cultural, que é integração com a vida,
com a alma da coletiva de um povo (GHIARONI, apud CABRALE, 2003, p. 6).
Esse alheamento de Oranice Franco às
badalações literárias, ao burburinho em torno da obra e, sobretudo da pessoa do
autor pode ser pensado, não como mera
dificuldade de inserção nos círculos literários, mas, ao contrário, como
Foucault diz em O que é o autor
(1992):
Na escrita, não se
trata da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever, nem da fixação de
um sujeito numa linguagem: é uma questão de abertura de um espaço onde o
sujeito de escrita está sempre a desaparecer (FOUCAULT, 1992, p. 35).
Ou seja, vencida a fase da ânsia para
publicar e invadir o mundo editorial forma-se, não uma frustração pela
irrealização desse sonho, dessa obsessão, mas uma consciência de certo
parentesco da “escrita com a morte” (FOUCAULT, 1992, p. 35) em que “o autor deve
apagar-se ou ser apagado em proveito das formas próprias aos discursos”
(FOUCAULT, 1992, p. 80).
Daí Oranice Franco preferir, cada vez
mais radicalmente, vida plena à sua obra com o alheamento, com a morte do
autor, até à sua morte física, num eco desse “o que importa quem fala?”
(FOUCAULT, 1992, p. 34).
Terceiro, pelo caráter da publicação,
divulgação e distribuição de seus livros dentre eles alguns custeados pelo
autor, outros em razão de sua amizade com os Irmãos Pongetti, com a editora A
Noite, que pertencia a um grupo da própria Rádio Nacional e, posteriormente,
com Sebastião Hersen, da Editora Conquista, do Rio de Janeiro, que publica
autores novos, desconhecidos, e com quem desenvolve uma espécie de ficção
editorial, que inclui a publicação de alguns livros de Oranice Franco, como, Tem peru na lagoa (s/d), Oranice’s (1982), como se tivesse sido
publicados pela editora Lagoa Mansa, da cidade escrita de mesmo nome. Um jogo
editorial-ficcional.
Ou seja, a carreira de escritor e
poeta de Oranice Franco sempre se faz na contramão do que pretendem e fazem os
literatos. Malgrado o objetivo que é ser lido, atingir o grande público, tudo
se foi fazendo muito amadoramente. Muito timidamente. Pequenas editoras,
limitadas edições, divulgação insuficiente, fuga dos grandes jornais, ausência
dos suplementos literários e acomodação à suposta ideia de que o rádio e os
seus intelectuais produzem subliteratura.
Aliás, a obra de Oranice Franco
fascina exatamente por se colocar o tempo todo nessa aparente contramão da
história e da literatura. Quase que numa negação ou num certo apagamento da
história de sua literatura e de si na história. Porém, não se faz literatura
absolutamente desconexa do tempo, do espaço, das vozes contemporâneas de sua
escrita, portanto, indiferentes e ilesas à história. Porque a literatura é
transformadora da história pela urdidura do que poderia ter sido e não foi, e
não pôde ser, mas que se torna e se faz história por essa escrita que, mesmo
não tendo compromisso com representação, encenação, confirmação ou negação da
história, jamais fora da histórica ou anti-histórica.
Como demonstrar, então, o
entrelaçamento entre vida e obra de Oranice Franco? Como não apenas
reivindicar, mas inserir a sua obra no cenário da literatura brasileira se nela
se lê um silenciamento, uma suposta negação da própria história?
A biografia de Oranice Franco nos
autoriza dizer que desde sua infância em São João del-Rei, demonstra habilidade com a palavra,
com a produção textual. Seu acervo guarda muitos cadernos dessa época de quando
estuda em São João
del-Rei, onde se pode ler com certa clareza o escritor, o poeta que ali
naquelas páginas se forma a duras penas no seu enfrentamento diário e pessoal
com a palavra. Quer escrever, publicar, compreender o mundo e transformá-lo, ou
melhor, humanizá-lo pela palavra, pela literatura. Nada ou pouca coisa me
parece mais caro ao projeto literário de Oranice Franco do que o seu esforço
histórico e poético pela humanização do homem e do mundo.
Lagoa Mansa não é caricatura de nada.
Nem se São João del-Rei, nem dos amigos que a sua escritura nasce de cidadania
lagoense. Nem da história e da cultura de São João del-Rei, Aiuruoca, Lima
Duarte e Baependi. Lagoa Mansa é a sua ação humanizadora, de cidadão consciente
do século XX, poeta, escritor, na história através das pequenas coisas, das
cidades mais simples, das pessoas, dos valores mais simples. Do mínimo.
Aprendida lição de Manuel Bandeira de que “a poesia está em tudo – tanto nos
amores, como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas”
(BANDEIRA, 1984, p.19) e de que “as poesia está nas palavras, se faz com
palavras” (BANDEIRA, 1984, P. 30).
No entanto, poesia e literatura, bem
como teatro, música, dança ou qualquer arte não são ocupações bem vistas. Ideia
de gente séria, de quem quer trabalhar, quer vencer na vida. E Oranice Franco
se apaixona pelo Jornalismo, como esta espécie de fuga do preconceito social
contra ser poeta, ser escritor. Tanto que no final dos anos 30, como ele mesmo
escreveria sobre si num artigo publicado no 2º
Anuário do Rádio, 1946 – “com os primeiros fios de barba, achei que era
tempo de criar juízo. Arrumei as malas e fui para Belo Horizonte. Na capital
mineira me ajuntei a outros poetas e desandei”.
Destas amizades de Belo Horizonte se
destaca a de Murilo Rubião com quem trabalha como articulista no jornal Folha de Minas e na revista A Mensagem. Tanto que em carta de maio
de 1954 a
Oranice Franco, que já está no Rio de Janeiro, Murilo Rubião tece elogio ao
estilo de Oranice que chama de “doce lirismo que infelizmente vai se tornando
raro”, além de mencionar a crítica de Mello Cançado ao livro Mares de Minas (1949), de Oranice
Franco e de brincar/revelando ao amigo que anda um pouco afastado da
literatura. Está plantando abóboras no quintal e insiste que Oranice lhe visite,
incluindo no final da carta o endereço do bairro Serra, em Belo Horizonte.
De Belo Horizonte, Oranice Franco
vai para o Rio de Janeiro, aonde chega, como diz Ghiaroni, “cheio de ideias
literárias, querendo publicar livros e, em suma, invadir o mundo editorial”.
Mas de novo e sempre a sobrevivência supera, atrasa, por vezes até atrofia os
sonhos pela urgência da vida. E Oranice vai trabalhar na Rádio Nacional do Rio
de Janeiro.
O rádio nos anos 40 está no início
de sua expansão, caminhando para o ápice de sua afirmação como um elemento
cultural do Brasil, como um instrumento de difusão cultural. Aliás, a Rádio
Nacional passa a fazer parte do patrimônio nacional por meio de Decreto de
Getúlio Vargas e se expande sob a direção de Gilberto de Andrade. Mesmo
frustrando os anseios do poeta e do escritor que só ao longo dos anos,
trabalhando ao lado de Paulo Gracindo, Mário Lago, Dias Gomes, Ghiaroni, Nestor
de Holanda, entende que ali e dali, ao contrário de uma ideia preconceituosa,
admitida pelos próprios intelectuais de rádio, produz-se uma das vertentes
importante da cultura brasileira. Mas continua escrevendo e publicando
timidamente fora das quatro paredes do rádio, como um jovem que não se desfaz
nem se distancia de seu sonho. Se for verdade, como Oranice diz que “todo
mineiro é feito de pequenas raivas”, a sua obra é prova da perpetuação desta
raiva diária de mineiro que continua produzindo literatura – poesia e prosa –
na contramão do próprio mundo literário, que começa a descobri-lo nesses tempos
em que a historiografia literária se faz, refaz, reescreve-se das margens, dos
bastidores da literatura para os chamados grandes centros literários e
culturais.
Oranice Franco é reconhecido como um
dos melhores redatores da Rádio Nacional, tendo produzido diversos programas,
escrito radionovelas, sozinho e em parceria com Mário Brassini e Pedro Anísio.
Trabalha com publicidade para mercados diversos numa época em que começa a se
desenvolver tanto a propaganda e a publicidade quanto a própria noção de tornar
determinado produto mais acessível a um maior número possível de consumidor,
dada à audiência da Rádio Nacional. É assim que Cadena (2011) no artigo Rádio Nacional: a BBC verde amarela
afirma que:
Era o poeta e cronista Oranice Franco quem
redigia os textos para os anunciantes diretos da emissora, dentre eles grandes
marcas como Sydney Ross e Palmolive. A Rádio Nacional, na verdade, seria a
mídia da mãe, durante mais de vinte anos, para os grandes fabricantes de
produtos de consumo (CADENA, 2011, p. 1).
Além de produzir toda sua obra literária entre 1949, ano da
publicação de seu primeiro livro de poesia, Mares de Minas, e 1988, ano de publicação de seu último livro, Histórias de Lagoa Mansa, que se trata
da reescrita de 29 contos escolhidos de sua trilogia composta por Lagoa Mansa (1972); Estórias de Lagoa Mansa (1981) e Tem perua na Lagoa (s/d).
Penso que o entrelaçamento entre
vida e obra de Oranice Franco se pode dizer ou chamar de um entrelace. Oranice
Franco nasce em Lima
Duarte, em 2 de novembro de 1919, passa por Aiuruoca, muda-se
para São João del-Rei, estuda em Barbacena e Juiz de Fora, passa pelo
jornalismo em Belo
Horizonte e vai definitivamente trabalhar no Rio de Janeiro.
Porém, ama e se fixa, apaixonadamente, em São João del-Rei. Essa paixão pela cidade e por
sua gente é fundamental à compreensão tanto do homem Oranice quanto do escritor
e poeta.
Paixão de tal modo contagiante que é
ela que dá à obra de Oranice tanto consistência literária quanto uma aparente
desconexão ou descompromisso com a história no interior da qual se acha e de
que aparentemente se exclui.
A sua biografia diz que se torna, na era
de ouro do rádio, um dos principais redatores e produtores de programas da
Rádio Nacional, tendo empreendido esforços em 1950, junto ao governo de Juscelino
Kubitschek pela concessão de canal nacional de televisão. Produz diversos
programas, com destaque para Histórias do
Tio Janjão (1953-1955), pelo poder de divulgação e incentivo da leitura
neste país com fama de que aqui não se lê, de que se lê cada vez menos e pior.
Prova contundente senão da inverdade absoluta desta ideia, pelo menos do
esforço efetivo pela superação deste suposto distanciamento da leitura.
Nesta época,
este programa é utilizado por inúmeras escolas no país que passam a criar
dentro do espaço pedagógico seu momento de leitura, tão importante que as
crianças, numa confusão entre o Tio Janjão narrador das histórias e o escritor
Oranice Franco, escrevem para o escritor na Rádio Nacional. E, assim, as Histórias do Tio Janjão se tornam um
elemento provocador da imaginação, dos sonhos de construção de uma nova
sociedade, do acesso democrático à cultura.
Quando não
só o rádio, como o próprio país passa a viver dias difíceis no cenário
político, culminando com a Revolução de 1964, quando o rádio já vive seu
declínio com o desenvolvimento e concorrência da televisão com início de um
longo período de ditadura, Oranice Franco manifesta-se publicamente, diante da
perseguição sofrida por vários colegas e rádio e outros intelectuais, como
Mário Lago, Paulo Gracindo, Paulo Roberto, César Ladeira. São demitidos 67 funcionários
da Rádio Nacional e 81 postos sob investigação, denunciados por apoio ao
comunismo. Oranice Franco se põe ao lado deles. E, ampliando esse apoio
solidário, manifesta-se em ato de assinatura do Manifesto do Comando dos Trabalhadores Intelectuais, em outubro de
1963, pela emancipação cultural do país e em defesa das liberdades democráticas,
conforme transcrição feita desse manifesto por Carlos Heitor Cony no livro Vozes do golpe: a revolução dos caranguejos
(2004). Sendo em 1964 jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo pedem a prisão
de todos os signatários deste manifesto sob a acusação de fazerem parte de um
esquema comunista de assalto ao poder.
Embora tendo sido, provavelmente, redigido em
outubro de 1963, data da fundação do Comando dos Trabalhadores e Intelectuais
(CTI), entre o dia 1º e o dia 13 de abril de 1964 é que concretiza a
publicação, a veiculação e a repressão ao Manifesto dos Trabalhadores
Intelectuais.
O objetivo do manifesto, segundo Czajka (2011,
p. 71) é:
a)congregar
trabalhadores intelectuais, na sua ampla e autêntica concentração;
b)apoiar as reivindicações específicas de cada
setor da cultura brasileira, fortalecendo-as dentro de uma ação geral efetiva e
solidária;
c)participar da formação de um frente única,
democrática e nacionalista, com as demais forças populares, arregimentadas na
marcha por uma estruturação melhor da sociedade brasileira.
Sendo, assim, o Comando dos Trabalhadores
Intelectuais, procura
desde o início de
suas atividades congregar diversos artistas e intelectuais com o intuito de
estimular a participação destes na consolidação dos interesses e reivindicações
de uma “classe” dos intelectuais. (p. 63).
Ou seja:
O CTI nasce agregando
intelectuais das mais variadas áreas como oposição contra a tentativa de golpe
da direita e da definição da liberdade democrática. Assim, “O CTI surgiu com
essa característica pluralista e procurava ressaltar a importância desse
aspecto na estruturação e na consolidação da luta dos intelectuais pela cultura
nacional-popular” (p. 67).
Sobretudo com relação a Oranice Franco
é importante ressaltar que:
Pelo contrário, dos integrantes, alguns terão
maior visibilidade outros, menor no espaço público dependendo do modo como
manejaram seus vocabulários e inseriram-se na indústria cultural. E essa
visibilidade não será dada necessariamente pelo pertencimento a alguma entidade
ou grupo específico (como uma unidade fechada e coesa em torno de um projeto
definido), mas pela atuação individual de alguns de seus representantes na cena
política e cultural (p. 78)
Como fica claro na biografia de Oranice, o
escritor nunca se demonstra um intelectual inserido de arraigado pertencimento
a qualquer grupo específico, que não seja o número exíguo de seus amigos. A
quem, no entanto, é pródigo em apoio e solidariedade, daí, não apenas ter
assinado sua adesão ao Comando dos Trabalhadores Intelectuais, partilhando as
ideias e posições político-sociais, como toma literalmente parte na causa por
eles defendida quanto nas consequências que lhe acomete em razão dessa tomada
de posição.
Alguns textos confirmam que, malgrado o jeito
arredio, Oranice Franco participa ativamente dos transtornos desse momento
político no país.
Em razão da postura da Rádio Nacional pela
defesa da democracia em resistência ao golpe, a rádio é invadida por militares,
fuzileiros navais e coronéis do Exército que instauram o IPM (Inquérito
Policial Militar), com o resultado de 36 demissões, dentre artista e
jornalista, 67 afastamentos e 81 investigados que podiam ser demitidos ou
afastados. Muitos são torturados. Segundo Oliveira (2014) “por medida de segurança, foram afastados
do serviço e das dependências da Rádio Nacional”.
Castro
(2015) ressalta que:
No
dia 13 de abril de 1964, o Comunicado 6, assinado pelo Comando Supremo da
Revolução “afastou 36 funcionários da Rádio Nacional do Rio de Janeiro.
Deixaram o ar imediatamente: Ghiaroni, Mário Lago Dias Gomes, dentre outros. Na
época denunciantes pretendiam “limpar a Rádio Nacional do perigo comunista”.
Prova
contundente da participação solidária de Oranice Franco e de seu afastamento
das atividades na Rádio Nacional se encontra no jornal Correio da Manhã, de quarta-feira, de 29 de julho de 1964, coluna
“Bom dia Rio”, em
que Sérgio Bittencourt noticia que:
A
crônica das 19 h. da Nacional vem sendo redigida por Almeida Rego em
substituição da Oranice Franco afastado da rádio pelos “heróis” de uma
revolução (BITTENCOURT, 1964, p. 3)
Ao
lado desses fatos, a declaração do próprio Ghiaroni, companheiro de redação e
amigo de Oranice Franco, em carta a esse pesquisador em que revela:
ORANICE E A SAUDADE: De Oranice Franco fui amigo,
leitor e irmão. Dele não tenho uma lembrança que não inclua algo de sentimento
fraterno. Trabalhamos juntos, escrevemos juntos, sonhamos juntos, estivemos
escondidos juntos quando nos parecia que a nova situação política do País não
nos via com bons olhos. Tudo isso passou. O que resta agora é a saudade do
grande companheiro, grande autor e maravilhosa criatura humana que se chamou
Oranice Franco, um nome para ficar na memória das gerações sucessivas
(GHIARONI, Carta, 25 abr. 2000).
Todavia,
a obra de Oranice Franco ressalta que, além, de seu caráter social arredio às
badalações literárias ou não, pelo menos mais duas instâncias reúnem também sua
resistência: à política (“a política é a ingratidão”, na fala da personagem
Juvenal de Souza que,
por causa das desavenças políticas, foge e vira, noutro lugar, João dos Santos,
para salvar as iniciais na anca égua – FRANCO, 1972, p. 81). Embora não se
furte de disseminar pelo caos que também corroem a tradição da cidade
denúncias, reivindicações, críticas ao poder municipal, aos arranjos e
promessas eleitoreiras. E à polícia (“polícia é um trem danado! Um sozinho é
uma humildade! Juntou uma porção, êta!”, na fala de Alacrino, um morador do
distrito Quatrolhos, de Lagoa Mansa – FRANCO, 1972, p. 87). Salvo
eventualidades de 1963-1964, não se sabe de seu envolvimento com a polícia. A
política, no entanto, está em sua obra sempre sob um olhar crítico, cuidando de
seu afastamento do interesse público.
Retomando a paixão de Oranice Franco por São João
del-Rei, os estudos até então empreendidos, a convivência praticamente diária
com sua obra (poesia, prosa, crônicas, radionovelas, literatura infantil),
pode-se dizer, embora sem a pretensão de reduzi-la apenas a este aspecto, que a
paixão pela sua cidade, sua gente, sua história, sua cultura é o entrelace que escreve, que tece a
vida e a obra de Oranice Franco, quase que como única cena, uma vez que o
cenário é permanentemente a cidade. É ela e é por ela que o poeta, depois de
vivida a sua diáspora pessoal, volta. Com ela e por ela que vence a saudade dos
primeiros anos no Rio de Janeiro, quando “o Rio começa a doer” e os morros da
Tijuca e do Corcovado citam, arrastam, acendem a Serra do Lenheiro de dentro do
peito. Que vence os barulhos, o tropel, o silêncio doído dos anos da ditadura
que enxergam em tudo ameaça. Que vence o idealismo de um progresso pelo
progresso, feito à custas de recessão. Que vence o fim dos áureos anos do
rádio, substituído em tudo pela televisão. Que vence os preconceitos de homem
de rádio, de intelectual e escritor de rádio. Que vence seu jeito arredio às
badalações sociais ou literárias, com seus livros lidos pela crítica
especializada. Que vence, enfim, o tumulto da cidade grande. Refaz, adulto, o
caminho do menino-rapaz.
O retorno é silencioso para o silêncio. Não há o choro da
ida. Nem a orgia da volta. Não há a ânsia da ida. Nem a desesperança da volta.
Não há os sonhos da ida. Nem a morbidez da volta. Só o poeta e a cidade sabem.
Certamente que Histórias de Lagoa Mansa
(1998), aliás, enfim “histórias”, sejam a celebração silenciosa desse regozijo
da volta, desse arredo derradeiro ao silêncio.
Agora a cidade e o poeta, seu criador, passaram pela
história. A cidade que o menino sonha, a cidade que o poeta recebe. A cidade
que inventam, que desejam, que escrevem. Conservam em meio às guerras, às
transformações sociais, políticas, econômicas, à tecnologia, a simplicidade de
sua geografia inscrita nos seios das serras de Minas Gerais, onde os sinos
falam e se embocam, propagam e se eternizam. E as noites são povoadas de
serenatas, os homens ainda se tornam mais humanos e os poetas, mesmo depois da
pedra no meio do caminho, inventam sertões gerais.
A
obra de Oranice Franco não nega a história. Não se silencia nem se mostra
indiferente diante das principais feridas que sangraram e ainda mantêm nítidas
cicatrizes nos dias atuais. Pelo contrário, exige que caminhemos por ela, como
quem chega numa cidade de Minas Gerais e escuta seus sinos, suas serenatas; lê
seus casos, seus letreiros solitários na madrugada insone; entrega-se aos
itinerários de suas procissões, de sua resistência, de suas denúncias, de seu
luto; canta suas músicas, entoa seus cânticos, seu hinos; acompanha suas
orquestras; encanta-se com seus poemas, com seus poetas, com as chamas trêmulas
de seus lampiões, para sempre acesos na memória; ouça seus odore, seus amores.
A história, o país pulsa em cada um destes gestos que são como as cidades no
meio destas montanhas – um único olhar não pode enxergá-las todas. Há que se
caminhar, ir, ter-se com cada uma delas onde elas se acham.
O grande valor da literatura de Oranice Franco, como
ressalta Murilo Rubião, em carta de maio e 1954, é exatamente este “doce
lirismo que infelizmente vai se tornando cada vê mais raro”. Mas também, porque
é impossível separá-la da vida. Aliás, “qualquer distinção entre literatura e
vida é enganosa” (BLOOM, 2013, p. 16).
Assim, corroborando o que diz Murilo Rubião, não sei se
este doce lirismo é o criador do humanismo de Oranice Franco ou, ao contrário,
o humanismo seja a mais cara criatura do “doce lirismo” do escritor.
Referências
bibliográficas:
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